Eduardo Felipe Matias
O Senado
aprovou na semana passada o projeto de lei complementar n. 146/19, que cria o
chamado Marco Legal das Startups. Ainda que este tenha muitos aspectos
positivos, a sensação geral causada pelo texto que segue agora para a Câmara
dos Deputados foi de frustração.
A construção do Marco Legal passou pela realização de diversas
reuniões com ampla participação de relevantes atores do ecossistema brasileiro
da inovação e por uma consulta pública que colheu grande número de
contribuições. O receio é de que, ao final de todo esse esmerado processo, a montanha
tenha parido um rato.
A evolução do projeto no legislativo reforça essa preocupação. O
projeto original, surgido na Câmara em 2019, que se baseou nas discussões que
estavam acontecendo à época, era consideravelmente abrangente e, embora
merecesse ser aperfeiçoado em alguns pontos, consistia em uma boa base para o
Marco Legal. A ele, se apensou o projeto encaminhado pelo governo federal em
outubro de 2020 que, ao simplesmente ignorar temas tributários e trabalhistas,
foi uma primeira ducha de água fria para o setor e um prenúncio de que o
apetite por reformas mais significativas não era dos maiores.
O projeto chegou ao Senado já despido de alguns incentivos fiscais
e, lá, deixaria cair a única peça de caráter trabalhista que ainda portava – as
stock options. O povo das startups, enfim, podia gritar que o Marco
Legal estava nu.
É verdade que disposições importantes foram abraçadas, como tive a
oportunidade de elogiar neste espaço. Algumas delas estão voltadas a eliminar a
burocracia e aumentar a segurança jurídica de quem empreende e investe no
setor, outras tem por objetivo adequar a legislação à realidade das startups, caso
da criação de um regime especial de contratação de soluções inovadoras pela
administração pública ou da adoção do “sandbox regulatório – em um
reconhecimento de que a regulação caminha mais lentamente do que a inovação,
sendo preciso, por isso, evitar que a falta de adequação da primeira impeça que
a segunda aconteça.
Porém, houve ausências que se fizeram notar.
É o caso, no âmbito tributário, de duas propostas em particular. A
primeira delas possibilitava que as startups optassem pelo regime do Simples
Nacional sem estarem sujeitas a algumas das vedações aplicadas às empresas
comuns, como a de se organizarem sob a forma de sociedades anônimas. Sem isso,
as startups se veem na prática muitas vezes impedidas de aderir a esse regime
simplificado, uma vez que, para isso, teriam que abrir mão de adotar o tipo
societário mais adequado à sua governança e à captação de investimentos.
A segunda visava eliminar uma distorção, que é a tributação do
investimento em startups ter o mesmo tratamento tributário daquele em fundos de
renda fixa. Isso leva os investidores anjo a pensarem duas vezes antes de
alocar seus recursos em empresas que representam uma aposta de risco muito
maior do que o de outras aplicações, algumas destas, inclusive, isentas, como as
letras de crédito imobiliário e do agronegócio.
Quanto às questões trabalhistas, a Câmara já havia enxugado o
projeto, eliminando iniciativas que procuravam flexibilizar as normas
aplicáveis às startups, e o Senado veio a excluir a regulação das stock
options, como mencionado. Essas opções de compra de ações são um
ótimo instrumento para atrair e reter talentos – principalmente em tempos de
pandemia, quando o trabalho remoto permite que empresas estrangeiras venham
recrutar profissionais por aqui. Trata-se de prática comum no mercado, mas em relação à qual ainda pairam
dúvidas sobre ser sua natureza remuneratória ou mercantil. A proposta poderia
ter sido aprimorada no Senado, porém este sequer chegou a discuti-la mais a
fundo.
Assim, o consenso foi se construindo no Congresso, a toque de
caixa, em nome da aprovação de um projeto cada vez mais descaracterizado. A explicação para essa falta de ousadia talvez
esteja em um dilema que esteve presente desde que o Marco Legal começou a ser debatido.
O ambiente de negócios brasileiro não é ruim apenas para as startups. Ele é
ruim para todas as empresas A tentação de estender a estas últimas qualquer
solução que venha a ser aplicada às primeiras é, assim, muito grande. Se algo é
bom para as startups, é bom para todos.
Com isso, o Marco Legal acabou pretendendo regular algumas
questões que afetam um universo que vai além daquele das startups, o que amplia
os efeitos das medidas sugeridas, podendo fazer com que estas enfrentem maior
resistência – a autorização para que as sociedades anônimas realizem
publicações legais pela internet, que tem provocado polêmica e sem dúvida é
necessária para as startups, pode ser considerado um exemplo de medida desse
tipo. Um projeto mais focado talvez tivesse tramitado sem ter que sacrificar
tantos pontos e poderia ter tratado outros tantos de forma mais ambiciosa.
Mesmo limitando o alcance do Marco Legal às startups propriamente
ditas, iniciativas poderão ser rejeitadas pelo receio de que possam afetar
negativamente as contas públicas. Para contornar esse obstáculo,
o debate precisaria ser mais aprofundado, o que provaria que, ao contrário, muitos
dos incentivos às startups têm o potencial de ter impactos positivos, gerando
mais renda e, com isso, aumentando a arrecadação. Senão, o que resta é assegurar
aos legisladores que o número
de empresas beneficiadas não seja exagerado, o que facilitaria a aceitação de
algumas ideias que acabaram barradas no Congresso. Nesse sentido, o Marco Legal procura limitar
o enquadramento das startups, definindo inclusive condições objetivas para
tanto. A lógica de se conceber uma definição de startup deveria ser a de permitir
que se propiciasse a quem empreende ou investe nesse tipo de empresa vantagens
que seria inviável estender a todas as demais. Veio a definição, relativamente
restritiva, mas não vieram os benefícios no nível esperado.
Ao não enfrentar os aspectos tributários e trabalhistas que
afligem empreendedores e investidores do setor, o projeto pode não apenas
perder uma oportunidade de prover remédios para algumas das principais dores
das startups, mas também corre o risco de que, por se ver esvaziado, até o nome
“Marco Legal” possa soar pretensioso e impreciso. Propostas que ficaram de fora
deverão ser objeto de novos projetos de lei. Assim como ocorre no Brasil em diversas
outras áreas, fortalecer o ecossistema das startups, que tem grande potencial
de crescimento e de criação de empregos, depende da vontade política de parar
de empurrar com a barriga os problemas que travam nosso desenvolvimento.
Eduardo
Felipe Matias é sócio de NELM Advogados, vice-presidente da Comissão de Startups da
OAB/SP e coautor do estudo Sharing Good Practices on Innovation.
Artigo originalmente
publicado no jornal Valor Econômico em 8 de março de 2021. Acesse aqui: link
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