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Nomeado por Trump pode redefinir a internet como a conhecemos

01 Novembro 2024/ Notícias & Artigos/

Escolha para liderar a FCC poderia pôr em risco a imunidade legal das plataformas digitais nos EUA, redefinindo a moderação de conteúdo nas redes sociais, com repercussões globais sobre a liberdade de expressão

 

Eduardo Felipe Matias

 

A nomeação de Brendan Carr pelo presidente eleito dos EUA, Donald Trump, para presidir a Federal Communications Commission (FCC) pode gerar impactos significativos no processo como as plataformas definem quais publicações de usuários devem ser mantidas ou removidas, atividade conhecida como “moderação de conteúdo” – objeto de discussão no Supremo Tribunal Federal brasileiro em julgamento relacionado ao art. 19 do nosso Marco Civil da Internet.

A atuação da FCC tradicionalmente envolve a supervisão de emissoras de rádio e TV, regulação de tarifas de serviços telefônicos, promoção do acesso à banda larga e questões como neutralidade da rede e privacidade em telecomunicações. Porém, a agenda de Carr sugere uma possível ampliação desse escopo, incluindo a regulação de discursos online e a limitação do poder das big techs, temas que, em princípio, não fazem parte das competências da agência.

As ideias de Carr, que integra os quadros da FCC desde 2017, estão delineadas em um capítulo que ele escreveu no “Projeto 2025”, documento do think tank conservador Heritage Foundation visto por muitos como um plano para o segundo mandato de Trump. Entre os pontos principais, está a oposição à Seção 230 do Communications Decency Act, legislação de 1996 que isenta sites de responsabilidade legal pelo conteúdo publicado por terceiros.

Quando a internet surgiu, era considerado inviável exigir que as empresas digitais emergentes contratassem grandes equipes para revisar publicações previamente à sua disseminação. O volume de informações tornaria o processo caro e lento. A Seção 230 evitou que aquelas empresas fossem sobrecarregadas por ações judiciais, permitindo que a internet escalasse, o que faz com que muitos a considerem a lei que verdadeiramente “criou o Vale do Silício”.

Ao mesmo tempo em que a Seção 230 livrava as plataformas de responsabilidade, as encorajava a combater certas categorias de publicações inadequadas. Para isso, incluiu a chamada cláusula do “bom samaritano”, oferecendo imunidade legal a decisões de boa-fé para bloquear ou remover conteúdos “obscenos, violentos, assediadores ou de outra forma objetáveis”.

A meta dessa cláusula era incentivar as plataformas a adotar um papel ativo na retirada de conteúdo ofensivo. Apesar disso, inicialmente, elas evitavam agir nesse sentido, alegando não serem “árbitros da verdade”. Com o tempo, também por perceberem que ambientes tóxicos afastavam usuários e reduziam receitas publicitárias, essas empresas mudaram de atitude e passaram a adotar estratégias de moderação mais robustas, incluindo a formação de equipes de “confiança e segurança” (Trust & Safety) compostas de milhares de colaboradores.

A nomeação de Carr pode, no entanto, mudar esse cenário. No Projeto 2025, ele propõe que a FCC reinterprete a legislação, cujo alcance, para ele, teria sido historicamente ampliado pelos tribunais, a fim de restringir a capacidade de uma plataforma remover conteúdo unilateralmente, com base na premissa de que, se esta modifica, amplifica ou remove publicações, estaria assumindo uma função mais próxima daquela de um “editor”, o que deveria limitar sua imunidade.

Ao longo de seu capítulo, ele critica severamente as big techs, alegando que “refreá-las” deveria ser a principal prioridade da FCC, sendo “difícil imaginar outro setor no qual exista uma lacuna maior entre poder e responsabilidade”. E, ao agradecer Trump no X (antigo Twitter) pela nomeação, Carr reforçou a necessidade de restaurar a liberdade de expressão para os americanos comuns e de “desmantelar o cartel da censura” formado por essas empresas.

Vale lembrar que a ideia de que a Seção 230 precisa ser reformada ressoa tanto entre republicanos quanto entre democratas. Entretanto, as motivações por trás desse apoio bipartidário diferem. Os republicanos acusam as plataformas de viés anticonservador e de remover publicações ou suspender contas de forma injusta. Já os democratas destacam a importância de ações mais rigorosas contra o discurso de ódio e a desinformação.

Logo, apesar do aparente consenso, a questão em aberto é o que precisa ser mudado na lei. Além disso, a visão de Carr enfrentaria barreiras para se tornar realidade. Expandir a autoridade da FCC para regular empresas que hoje não são classificadas como serviços de comunicação exigiria superar obstáculos legais significativos e provavelmente demandaria nova legislação – o que, com Trump na presidência, uma maioria republicana no Congresso e uma Suprema Corte conservadora, passa a ser uma hipótese que não pode ser descartada.

Eliminar ou reformar a Seção 230 poderia, ainda, ter consequências negativas, inclusive para o livre discurso, contradizendo o elogio feito por Trump a Carr ao anunciar a nomeação, de que este seria “um guerreiro da liberdade de expressão”. Dependendo do tipo de alteração que se fizer nas regras atuais, para evitar serem responsabilizadas as plataformas poderiam adotar posturas extremamente cautelosas, bloqueando preventivamente uma ampla gama de conteúdos e promovendo uma espécie de censura prévia, o que ao final aumentaria seu poder sobre o que é dito online.

O debate sobre a Seção 230 reflete, assim, a complexidade de regular a internet e o embate entre liberdade de expressão e responsabilidade no ambiente digital. Embora propostas como as defendidas por Carr busquem limitar o poder das big techs, sua implementação apresenta desafios legais e pode, na prática, gerar efeitos colaterais indesejados. Regras aplicáveis a redes sociais que, embora sediadas nos EUA, possuem usuários por todo o planeta, tendem a repercutir globalmente. Qualquer mudança exigirá uma abordagem criteriosa, capaz de propiciar um ambiente digital ao mesmo tempo livre e seguro para todos.

 

Eduardo Felipe Matias é autor dos livros A humanidade e suas fronteiras e A humanidade contra as cordas, ganhadores do Prêmio Jabuti e coordenador do livro Marco Legal das Startups. Doutor em Direito Internacional pela USP, foi visiting scholar nas universidades de Columbia, em NY, e Berkeley e Stanford, na California, e é professor convidado da Fundação Dom Cabral e sócio da área empresarial de Elias, Matias Advogados


Artigo originalmente publicado pelo Broadcast do Estadão/Agência Estado em novembro de 2024.




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