Escolha
para liderar a FCC poderia pôr em risco a imunidade legal das plataformas
digitais nos EUA, redefinindo a moderação de conteúdo nas redes sociais, com repercussões
globais sobre a liberdade de expressão
Eduardo
Felipe Matias
A nomeação de Brendan Carr pelo
presidente eleito dos EUA, Donald Trump, para presidir a Federal
Communications Commission (FCC) pode gerar impactos significativos no
processo como as plataformas definem quais publicações de usuários devem ser
mantidas ou removidas, atividade conhecida como “moderação de conteúdo” –
objeto de discussão no Supremo Tribunal Federal brasileiro em julgamento
relacionado ao art. 19 do nosso Marco Civil da Internet.
A atuação da FCC tradicionalmente
envolve a supervisão de emissoras de rádio e TV, regulação de tarifas de
serviços telefônicos, promoção do acesso à banda larga e questões como
neutralidade da rede e privacidade em telecomunicações. Porém, a agenda de Carr
sugere uma possível ampliação desse escopo, incluindo a regulação de discursos
online e a limitação do poder das big techs, temas que, em princípio, não fazem
parte das competências da agência.
As ideias de Carr, que integra os
quadros da FCC desde 2017, estão delineadas em um capítulo que ele escreveu no
“Projeto 2025”, documento do think tank conservador Heritage Foundation visto
por muitos como um plano para o segundo mandato de Trump. Entre os pontos
principais, está a oposição à Seção 230 do Communications Decency Act,
legislação de 1996 que isenta sites de responsabilidade legal pelo conteúdo
publicado por terceiros.
Quando a internet surgiu, era
considerado inviável exigir que as empresas digitais emergentes contratassem
grandes equipes para revisar publicações previamente à sua disseminação. O
volume de informações tornaria o processo caro e lento. A Seção 230 evitou que aquelas
empresas fossem sobrecarregadas por ações judiciais, permitindo que a internet escalasse,
o que faz com que muitos a considerem a lei que verdadeiramente “criou o Vale
do Silício”.
Ao mesmo tempo em que a Seção 230 livrava
as plataformas de responsabilidade, as encorajava a combater certas categorias
de publicações inadequadas. Para isso, incluiu a chamada cláusula do “bom
samaritano”, oferecendo imunidade legal a decisões de boa-fé para bloquear ou
remover conteúdos “obscenos, violentos, assediadores ou de outra forma
objetáveis”.
A meta dessa cláusula era incentivar
as plataformas a adotar um papel ativo na retirada de conteúdo ofensivo. Apesar
disso, inicialmente, elas evitavam agir nesse sentido, alegando não serem
“árbitros da verdade”. Com o tempo, também por perceberem que ambientes tóxicos
afastavam usuários e reduziam receitas publicitárias, essas empresas mudaram de
atitude e passaram a adotar estratégias de moderação mais robustas, incluindo a
formação de equipes de “confiança e segurança” (Trust & Safety)
compostas de milhares de colaboradores.
A nomeação de Carr pode, no entanto,
mudar esse cenário. No Projeto 2025, ele propõe que a FCC reinterprete a
legislação, cujo alcance, para ele, teria sido historicamente ampliado pelos
tribunais, a fim de restringir a capacidade de uma plataforma remover conteúdo
unilateralmente, com base na premissa de que, se esta modifica, amplifica ou
remove publicações, estaria assumindo uma função mais próxima daquela de um “editor”,
o que deveria limitar sua imunidade.
Ao longo de seu capítulo, ele critica
severamente as big techs, alegando que “refreá-las” deveria ser a principal
prioridade da FCC, sendo “difícil imaginar outro setor no qual exista uma
lacuna maior entre poder e responsabilidade”. E, ao agradecer Trump no X
(antigo Twitter) pela nomeação, Carr reforçou a necessidade de restaurar a
liberdade de expressão para os americanos comuns e de “desmantelar o cartel da
censura” formado por essas empresas.
Vale lembrar que a ideia de que a
Seção 230 precisa ser reformada ressoa tanto entre republicanos quanto entre
democratas. Entretanto, as motivações por trás desse apoio bipartidário
diferem. Os republicanos acusam as plataformas de viés anticonservador e de
remover publicações ou suspender contas de forma injusta. Já os democratas
destacam a importância de ações mais rigorosas contra o discurso de ódio e a desinformação.
Logo, apesar do aparente consenso, a
questão em aberto é o que precisa ser mudado na lei. Além disso, a visão de
Carr enfrentaria barreiras para se tornar realidade. Expandir a autoridade da
FCC para regular empresas que hoje não são classificadas como serviços de
comunicação exigiria superar obstáculos legais significativos e provavelmente
demandaria nova legislação – o que, com Trump na presidência, uma maioria
republicana no Congresso e uma Suprema Corte conservadora, passa a ser uma hipótese
que não pode ser descartada.
Eliminar ou reformar a Seção 230
poderia, ainda, ter consequências negativas, inclusive para o livre
discurso, contradizendo o elogio feito por Trump a Carr ao anunciar a nomeação,
de que este seria “um guerreiro da liberdade de expressão”. Dependendo do tipo
de alteração que se fizer nas regras atuais, para evitar serem responsabilizadas as plataformas poderiam adotar
posturas extremamente cautelosas, bloqueando preventivamente uma ampla gama de
conteúdos e promovendo uma espécie de censura prévia, o que ao final aumentaria
seu poder sobre o que é dito online.
O
debate sobre a Seção 230 reflete, assim, a complexidade de regular a internet e
o embate entre liberdade de expressão e responsabilidade no ambiente digital.
Embora propostas como as defendidas por Carr busquem limitar o poder das big
techs, sua implementação apresenta desafios legais e pode, na prática, gerar
efeitos colaterais indesejados. Regras aplicáveis a redes sociais que, embora
sediadas nos EUA, possuem usuários por todo o planeta, tendem a repercutir
globalmente. Qualquer mudança exigirá uma abordagem criteriosa, capaz de propiciar
um ambiente digital ao mesmo tempo livre e seguro para todos.
Eduardo Felipe Matias é autor dos livros A humanidade e suas fronteiras e A humanidade contra as cordas, ganhadores do Prêmio Jabuti e coordenador do livro Marco Legal das Startups. Doutor em Direito Internacional pela USP, foi visiting scholar nas universidades de Columbia, em NY, e Berkeley e Stanford, na California, e é professor convidado da Fundação Dom Cabral e sócio da área empresarial de Elias, Matias Advogados
Artigo originalmente publicado pelo Broadcast do Estadão/Agência Estado em novembro de 2024.
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