O presságio de uma guerra comercial
é causa de turbulência para a economia mundial, quando esta começava a ensaiar
um voo de cruzeiro. O conflito tem o potencial de balançar também o sistema
multilateral que tem como principal instituição a Organização Mundial do
Comércio (OMC).
Tudo começou com o anúncio por
Donald Trump, em março deste ano, de que imporia tarifas de 25% sobre a
importação de aço e 10% sobre a de alumínio. Seu alvo principal é a China, o
que ficou ainda mais claro quando os EUA divulgaram, semanas depois, a
aplicação de tarifas sobre mais de mil produtos importados daquele país, atacando
a apropriação indevida, pelos chineses, de propriedade intelectual de empresas
americanas. A China reagiu sobretaxando uma ampla gama de produtos americanos
e, desde então, as intimidações recíprocas não param de cessar.
A escalada de retaliações mútuas,
no entanto, não interessa a nenhum desses dois países.
No caso dos EUA, por exemplo, analisando-se
as possíveis consequências do aumento de tarifas sobre o aço e o alumínio, o
que, em retrospectiva histórica, poderá ser considerado o tiro que deflagrou a
guerra, a conclusão é que o disparo tende a sair pela culatra. Ao jogar para a
parte da torcida que o elegeu – eleitores do velho cinturão industrial em crise
– Trump pode prejudicar a competitividade das indústrias que têm o aço e o
alumínio como insumos, como a automobilística e a de eletrodomésticos, que
empregam muito mais trabalhadores do que aquelas que busca proteger. O aumento
geral de preços e as demissões nessas indústrias, que devem superar as vagas geradas
com a medida, diminuirão o bem-estar econômico geral da nação. De fato, é o que
se começa a observar: desde agosto, os preços dos produtos siderúrgicos nos EUA
aumentaram mais de 18%.
Além disso, ao mirarem na China, os
EUA acabaram acertando outros países, muitos deles seus aliados históricos. Em
1º de junho, entraram em vigor as tarifas sobre as importações de aço e
alumínio provenientes de União Europeia, Canadá e México. Para alguns outros
países, como Coreia do Sul, Argentina e Brasil – nosso País é o segundo maior
fornecedor de aço para os EUA, que são o destino de um terço de nossas
exportações desse produto –, foram estabelecidas cotas para as exportações. Quanto
a Canadá e México, apesar da parceria com os EUA no Acordo de Livre Comércio da
América do Norte (NAFTA) que, depois de ser muito questionado por Trump, acaba
de ser remodelado para dar lugar a um novo pacto comercial denominado USMCA (sigla
composta pelas iniciais dos três países), ambos, por enquanto, seguem sujeitos
a essas tarifas.
A constatação de que os principais fornecedores
de aço e alumínio para os EUA não sejam propriamente nações inimigas enfraquece
o argumento invocado por Trump, de que a dependência dos produtos importados seria
prejudicial para a indústria de defesa norteamericana, sendo por isso a taxação
justificada com base na proteção da segurança nacional – exceção ao regime
geral de livre comércio prevista no artigo XXI do Acordo Geral sobre Tarifas e
Comércio (GATT), que integra os acordos da OMC. Reforça essa impressão o fato
de que os EUA importam apenas 30% daquilo que consomem, e de que somente uma
pequena parcela do aço produzido ou comprado pelos EUA é destinada a fins
militares.
Mesmo que essa exceção fosse
aplicável, seu uso é arriscado e tem sido evitado ao longo dos anos, uma vez
que sua aceitação abriria precedente a ser utilizado por outros países para
restringirem suas importações. Caso a segurança nacional servisse de base de
defesa em uma ação na OMC e isso viesse a assegurar a vitória aos EUA, o
resultado poderia ser um efeito cascata, com outros países se aproveitando da
mesma brecha para adotar medidas protecionistas, o que seria péssimo para o
comércio internacional.
Assim, seja por não estar adequadamente
caracterizada, seja pelo receio que provoca, a justificativa da segurança
nacional dificilmente prevalecerá em uma ação na OMC.
Sabendo disso, China, União Europeia,
Rússia, Canadá, México, Turquia e Noruega acionaram o mecanismo de solução de disputas
da organização. Os EUA reagiram, reafirmando sua posição de que não cabe à OMC
julgar se determinada questão é ou não de segurança nacional e deixando claro
que não se submeterão a uma decisão nesses termos. Aproveitaram para mandar um
recado: tais ações não deveriam seguir adiante, por representariam um “risco
existencial” para o sistema multilateral de comércio.
Abrem-se, aí, duas hipóteses.
Se o presidente norteamericano resolver
simplesmente ignorar eventual decisão desfavorável e mantiver as tarifas, os
EUA se sujeitarão às retaliações dos países afetados, como determinam as regras
da OMC – quadro que, embora esteja dentro das regras do jogo, acabará causando
danos ao comércio internacional como um todo.
Porém,
há uma possibilidade mais preocupante.
Não
seria de se estranhar caso a condenação dos EUA pela OMC viesse a servir de
subterfúgio para que Trump, reforçando suas tendências isolacionistas, propusesse
a saída dos EUA da organização – sendo esse, portanto, o “risco existencial”
existente nesse processo.
Uma
atitude como essa estaria alinhada com a postura do atual presidente
norteamericano, que reitera a cada oportunidade seu desprezo pelo
multilateralismo em geral e pela OMC em particular e chegou a acusar essa
organização de tornar praticamente impossível que seu país fizesse bons
negócios. Ainda que as estatísticas mostrem que os EUA são mais vitoriosos no
sistema de solução de controvérsias da OMC do que a maioria dos países – tanto
nos casos que iniciam quanto naqueles em que são questionados – o governo
norteamericano tem contribuído para tornar esse sistema menos eficiente, obstruindo
a nomeação de novos membros para seu Órgão de Apelação, o que pode levar a sua
paralisia no ano que vem, quando o tribunal que deveria ser ocupado por sete
juízes, hoje desfalcado de quatro membros, poderia ficar reduzido a menos de
três pessoas, número mínimo necessário para garantir seu funcionamento.
Diante dessa situação, a própria
OMC, junto com o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, lançaram
recentemente um relatório conjunto defendendo a necessidade de se reformar as
regras multilaterais do comércio. E, no final de outubro, autoridades de 12
países, entre eles representantes de Canadá, México, União Europeia, Japão,
Austrália e Brasil, reuniram-se para discutir maneiras de aperfeiçoar a OMC,
agenda que inclui repensar o funcionamento de seu Órgão de Apelação, evitando
que este possa ser paralisado por um dos países membros, como vem acontecendo.
Todos esses acontecimentos vêm
perturbar a economia global em um momento em que esta começava a apresentar
sinais de recuperação. Após o comércio internacional de mercadorias ter
crescido 4,7% em 2017, recorde dos últimos seis anos, a OMC declarou que deve
rever para baixo a expectativa de aumento para 2018, levando em conta os
possíveis efeitos da guerra comercial entre EUA e China. Também a Organização
para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) concluiu que o cenário de
alta incerteza já está afetando o crescimento mundial, que deve ser revisado
para baixo, sendo preciso deter imediatamente “a tendência ao protecionismo e
fortalecer o sistema de comércio internacional baseado em regras globais".
É um esforço que vale a pena. O multilateralismo
trouxe frutos positivos para a comunidade internacional, e não foi só na área do
comércio. Seria irônico e ao mesmo tempo trágico se os EUA, mesmo país que
contribuiu de forma decisiva no passado para erguer as instituições sobre as
quais o sistema multilateral se alicerça, viessem a ser os responsáveis por sua
ruína.
Eduardo Felipe Matias
é sócio de Nogueira, Elias, Laskowski e Matias Advogados, Doutor em direito
internacional pela USP, duas vezes ganhador do Prêmio Jabuti com os livros “A
humanidade e suas fronteiras” e “A Humanidade contra as cordas”.
(e-mail: [email protected])
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