Revista
“Inteligência artificial traz risco igual à questão
climática”, diz especialista Eduardo Matias
Por Edson Rossi
Duas vezes ganhador
do Prêmio Jabuti (pelos livros A Humanidade e suas
Fronteiras: do Estado Soberano à Sociedade Global e A Humanidade
Contra as Cordas: A Luta da Sociedade Global pela Sustentabilidade), Eduardo
Felipe Matias acaba de passar um ano nas universidades californianas Berkeley
e Stanford pesquisando especialmente inteligência artificial, tema
central de seu próximo livro. “Ela já é, e será exponencialmente mais,
decisiva para todos os governos, todas as instituições e em especial todas as
empresas”, disse Matias, que é doutor em Direito, sócio responsável pela
área empresarial do escritório Elias, Matias Advogados.
DINHEIRO — Parece consenso que os dados e seu uso
por meio de inteligência artificial (IA) são determinantes para quem detém o
poder, seja político ou econômico. Quais os ganhos e os riscos dessa situação?
EDUARDO FELIPE MATIAS — Você tem dois fatores de atribuição de
poder hoje, a inteligência artificial e os dados, que estão interligados,
porque os dados servem para alimentar os algoritmos. A inteligência
artificial é o que a gente chama de tecnologia de propósito geral, por isso é
muito comparada com a eletricidade, porque o impacto que ela traz é para toda a
sociedade e é enorme.
Esse é o tema de
seu próximo livro, certo?
Exatamente. E aí vem uma questão: a gente acredita que as decisões são tomadas
por livre arbítrio. Só que a persuasão que os algoritmos promovem permite
manipular as pessoas a ponto de esse livre arbítrio não ser mais tão livre.
Então, as pessoas acreditam que estão tomando decisões, mas elas estão sendo
guiadas pelos algoritmos.
Quais os riscos?
A democracia fica em risco. Esse é um lado. Outro lado, evidentemente, é o
quanto governos podem usar esse poder pra tomar decisões ou mesmo conduzir a
opinião pública para decisões que eles [governos] defendam. Sem dúvida,
plataformas podem servir de instrumento para esse tipo de manipulação. Sem
dúvida, há tentativas.
Há risco para a
própria democracia?
Existe o problema das deepfakes [manipulação refinada de imagens e sons] que é
algo que a gente não está nem aí… Imagine numa véspera de eleição que você pode
colocar alguém falando algo que você não esperaria, que nem é verdade e, com
isso, a pessoa perde votos. Então, eu acho que sim, que a tecnologia, se não
for bem controlada, pode colocar a democracia em risco.
Uma situação
totalmente nova?
Fake news sempre existiram. A diferença é que hoje, como tudo na internet,
ganham volume e rapidez. É mais difícil controlar. Você nunca conseguiria
soltar um boato para o Brasil inteiro na véspera de uma eleição 50 anos atrás.
Hoje consegue por meio da internet. Esse é um ponto. Outro, grave também,
é que você assiste ao aumento do autoritarismo, com governos populistas. Isso
é muito beneficiado pela tecnologia. Pegue o reconhecimento facial e veja o que
acontece com governos que detêm essa tecnologia, como no caso da China. Permite
conhecer [e vigiar] o seu cidadão, ter um domínio sobre ele.
Já existe algum
debate avançado sobre esse tema?
Existem algumas tendências importantes. Uma é inteligência artificial
explicável, outra é inteligência artificial responsável, com obrigações como
auditorias e relatórios de impacto. Então você não pode lançar um produto que
possa afetar a sociedade sem considerar o impacto disso. Aí a gente entra um
pouco na regulação que está sendo feita no Brasil: o quanto você pode ir no
detalhe dessas inteligências artificiais? Nem entendemos direito como elas
funcionam. Você talvez tenha que pensar em outras questões, como
mecanismos de controle, mecanismos de avaliação de como aquilo funciona, para
poder fazer com que a gente saiba o quanto elas são positivas.
Porque podem
trazer soluções para problemas complexos…
Soluções importantíssimas
para a mudança climática. Você tem captura de carbono, energia renovável, você
tem produção de alimentos, soluções para a saúde. São incontáveis os
benefícios.
“O autoritarismo é muito beneficiado pela
tecnologia. Veja o que acontece com governos que adotam o reconhecimento
facial, como no caso da China. Ela permite conhecer o cidadão, ter um domínio
sobre ele.’’
E mesmo assim é
necessário regular?
Regular de uma forma muito rígida talvez não seja a melhor solução. Tem que
entender como funciona. Não será fácil porque o primeiro fator é a
imprevisibilidade. Se é imprevisível, como regular? Esse é o primeiro
problema. O segundo problema é você ter essa dificuldade em acompanhar a
evolução. A inteligência artificial progride muito rapidamente. E o processo
legislativo é lento. Principalmente porque ele é legítimo. E a questão maior
deve ser a internacionalização. Porque se não for internacional, não adianta.
Você pode ter alguns lugares em que a tecnologia é desenvolvida sem freios, e
aí o risco vai continuar existindo, porque ela prolifera muito rapidamente. Mas
talvez ter um guarda-chuva internacional possa servir como uma espécie de guia
para que, enfim, regulações locais aconteçam a partir de premissas. Mas isso
não vai acontecer.
Por quê?
A gente demorou muito para ter um acordo global sobre o clima. E esse acordo,
infelizmente, pouco é colocado em prática. Então, assim, na prática, a
gente pode ambicionar ter várias rodadas de negociação para ter um acordo sobre
intervenção artificial global, mas a gente sabe que vai demorar e que não
necessariamente vai ser seguido. Mas a gente tem um grande problema global
e precisa de um tratamento global.
Há um grande
impacto sobre pessoas, empresas e governos. Esse debate já está bem
compreendido?
Todos começam a perceber como os dados são importantes, a ter compreensão até
em relação à privacidade. Os dados estão cada vez mais sendo acumulados —
desde o celular no bolso até a internet das coisas, dados que estão na sua
geladeira —, mas você tem um tipo de empresa que domina, tanto os dados quanto
a inteligência artificial, que são as Big Techs, as grandes empresas de
tecnologia.
E aí entra a
questão de concentração de poder?
Vamos pegar o poder econômico primeiro. Essas empresas têm uma riqueza muito
grande. Isso vem da concentração de dados e do uso deles. Um exemplo: são 9
bilhões de buscas diárias realizadas no Google. Junte duas outras informações:
a de que elas investem US$ 223 bilhões anualmente em Pesquisa &
Desenvolvimento, a maior parte em IA [o que leva também à atração dos maiores
talentos], mais o investimento que fazem em outras empresas de IA. A conclusão
é que elas estão dominando ainda mais o mercado.
Qual a falha de
sistema que permitiu isso?
Tem um ponto importante aí. A desmaterialização dos negócios delas leva a que
elas sejam globais por excelência. Essas empresas crescem, crescem, crescem de
forma desmesurada e é preciso igualmente entender o que está acontecendo em
relação à concorrência. Porque para a inovação é importante que você tenha
empresas, startups, em condições de competir no mercado, de trazer soluções
melhores. Só que a gente tem assistido a algo um pouco diferente disso. A
gente assiste à formação de monopólios.
Como conseguir
romper isso?
É muito difícil. Porque você tem o que se chama em inglês de Gatekeeper Power,
que basicamente é o poder de porteiro, de controle dos conteúdos. Então, uma
empresa hoje, se ela quer comercializar on-line nos Estados Unidos, ela depende
da Amazon. Globalmente, Google, Meta e Amazon detiveram 64% da publicidade
digital em 2022. Google 39%, Meta 18%, Amazon 7%.
Um poder
essencialmente americano…
Não. Não se resume aos Estados Unidos. Talvez a gente tenha mais dados dos
Estados Unidos, mas as chinesas Tencent, Baidu, até certo ponto a própria
Alibaba, estão nesse jogo também. Sem falar na ByteDance, que tem o TikTok, e é
considerada a startup mais valiosa do planeta, avaliada em US$ 300 bilhões.
Todas indústrias de uso intensivo de dados.
Um novo
equilíbrio que não chega a ser muito novo.
Uma situação em que Estados Unidos e China se destacam. Porque são os países
que têm as empresas que dominam esse setor da tecnologia. E também são os
países que mais investem em inteligência artificial. Então, existe uma nova
corrida armamentista. E é quase inevitável que isso se retroalimente. Que cada
vez mais esses países se destaquem em relação aos demais. Temos aí um desafio
também de entender essa geopolítica.
Há outras
consequências?
Em várias frentes. Uma delas: a mudança na divisão internacional do trabalho.
Se você puder automatizar a sua fábrica, é mais interessante manter essa
fábrica em um país desenvolvido, que tem gente especializada. Seu custo
logístico é muito menor. Então, você tem aí um fim desse gap que estava sendo
reduzido no auge da globalização, das cadeias produtivas globais, que mexe um
pouco com essa divisão internacional do trabalho. Mais uma vez, os mais
ricos ficam ainda mais ricos.
“Para a inovação é importante ter startups
em condições de competir no mercado. O que a gente assiste é o oposto: a
formação de monopólios’’
A legislação não
acompanha a consolidação do poder econômico dessas empresas. Isso faz com que
enfrentem até instituições do Estado, não é?
Você tem a mesma dificuldade no Brasil que tem nos Estados Unidos. E talvez o
parâmetro diferenciado seja a Europa. Há três coisas separadas aí. Uma é a
regulação de grandes empresas. Acho que existe um certo consenso de que
não é boa a formação de monopólios, são mais do que entendidos os efeitos
nocivos que um monopólio pode ter sobre a concorrência. Isso é uma coisa
tratada, vamos dizer, numa caixinha. Outra questão é a regulação da
inteligência artificial em si.
E a terceira?
Quando as redes sociais foram invadidas por discursos extremados e
desinformação, se tornando um ambiente tóxico, começou a haver uma
autorregulação e isso foi vendido como se fosse suficiente. Não é simples
regular esse tipo de situação. Ao exigir que essas empresas controlem
demais o conteúdo, corre-se o risco de que elas passem a se tornar censores. Tornando-se
censores, com o poder que elas acumulam, será um poder maior ainda de começarem
a controlar o discurso público.
Ou seja, o
efeito colateral ficaria pior?
Na prática, não é simples regular esse assunto. É preciso ter muito mais
diretrizes. Não se pode impedir o debate de acontecer. A sociedade tem que
discutir.
Entrevista originalmente publicada na edição de 12 de
novembro de 2023 da revista IstoÉ Dinheiro. Acesse à versão online da entrevista aqui: link
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