Realidade
Virtual, potencial real
Eduardo
Felipe Matias
Construído ao longo de quase duas
décadas a partir de 1887, o Main Quad é o coração da Universidade Stanford, na
Califórnia. É em um dos prédios desse quadrilátero principal, parte mais antiga
do campus, que está o Virtual Human Interaction Lab (VHIL), laboratório que, em
contraste, desenvolve pesquisas de ponta em realidade virtual (RV).
O objetivo do VHIL é entender as implicações
psicológicas e comportamentais dessa tecnologia e de sua correlata, a realidade
aumentada, que constituirão a base do metaverso. O laboratório é dirigido pelo
professor Jeremy Bailenson, seu fundador, também autor do livro Experience on
Demand, que explora o potencial da RV em diversas áreas, dos esportes –
ajudando os quarterbacks do futebol americano a aperfeiçoarem seus passes – à
medicina – na qual já vem sendo utilizada no tratamento de traumas e fobias.
Foi com o intuito de entender esses e
outros possíveis usos, em particular aqueles relacionados aos Objetivos do
Desenvolvimento Sustentável da ONU, que visitei o VHIL.
O laboratório conta com uma sala
multissensorial que visa proporcionar uma imersão integral na RV. Seu chão pode
se movimentar, e alto-falantes ao redor de todo o ambiente fornecem um som
espacial que, somado ao headset de última geração, propiciam a impressão
de se estar de fato vivenciando determinada situação, como andar sobre uma
prancha, sobrevoar uma cidade ou estar em meio a um terremoto.
Os efeitos psicológicos de
experiências imersivas como essas se aproximam daqueles provocados por
experiências reais e, graças a isso, essa tecnologia pode se mostrar persuasiva
para promover mudanças de ponto de vista e de comportamento. No VHIL, pude provar
algumas simulações desenvolvidas com essas finalidades.
Na primeira delas, você entra na pele
de alguém prestes a passar a viver em condição de rua. Ela se inicia dentro do
apartamento em que você mora, cujo aluguel, como o proprietário do imóvel que
bate insistentemente à sua porta faz questão de lembrar, você não está conseguindo
pagar. Depois de se ver obrigado a escolher alguns de seus poucos pertences
para vender e tentar, sem sucesso, cobrir sua dívida, você é despejado e se encontra
dentro de seu carro, em uma noite chuvosa, quando é abordado por um policial
que o impede de dormir por lá. Tendo vendido também seu automóvel, a cena
seguinte é em um ônibus, no qual, sob constante risco de ver tudo que sobrou de
seus objetos pessoais – o que agora cabe em uma mochila – ser furtado, você tem
a oportunidade de ouvir de outros moradores de rua suas histórias de vida, que
os levaram a esse estado.
Colocar alguém literalmente no lugar
do outro amplia sua compreensão dos problemas enfrentados por aquela pessoa e
pode, indiretamente, estimular a adoção de políticas públicas voltadas a solucioná-los.
Em outra simulação com objetivo parecido, escolhe-se um avatar completamente
diferente de si próprio visualmente – pela idade, sexo ou raça, por exemplo – e
se gasta um tempo olhando para um espelho virtual e se habituando ao novo
corpo, fazendo diversos movimentos que são acompanhados com perfeição por sua
imagem alterada refletida. Após ter “entrado no personagem”, você se volta e é
surpreendido por um sujeito que, raivosamente, lhe dirige agressões
preconceituosas.
Outra vertente de simulações procura conscientizar
a respeito de questões ambientais. Em uma delas, você está inserido em uma
floresta virtual e, por alguns instantes, desfruta a paisagem e o canto dos
pássaros. Até que uma serra elétrica virtual lhe é dada, transformando-o em
lenhador. A sala multissensorial e os controles que provocam uma sensação tátil
são explorados ao máximo, do barulho ensurdecedor da motosserra à trepidação
sentida pelas mãos que a seguram, até o baque provocado no chão pela queda da
árvore, seguido do silêncio pela fuga dos pássaros.
Será que simular uma ação que foge ao
dia a dia da maioria, realçando por meio visual, auditivo e tátil as
consequências do consumo excessivo de papel, seria capaz de mudar o comportamento
das pessoas de forma mais acentuada do que se essa mesma ação lhes fosse descrita
em texto ou vídeo? Bailenson narra em seu livro um teste realizado em Stanford para
avaliar exatamente isso, o qual constatou que aqueles que haviam participado da
experiência em RV passaram a usar 20% menos papel do que os que haviam sido
expostos aos demais tipos de mídias.
Essa capacidade de causar engajamento
torna a RV especialmente interessante no ensino. Embora o alto custo de seus
equipamentos hoje seja um impeditivo para sua adoção em larga escala, a
tendência, com a aposta que vem sendo feita por algumas big techs no metaverso,
é que os preços desses produtos caiam. Vale a pena, então, pensar em como a RV
pode servir à educação.
Foi com esse intuito que Anna Carolina
Queiroz, pesquisadora do VHIL que estuda os efeitos dessas novas mídias sobre a
aprendizagem, liderou o
projeto Realidade Virtual nas Escolas, realizado no Brasil em colaboração entre
o laboratório e o Instituto EDP. Nele, mais de 11 mil crianças de 48 escolas tiveram acesso a um
vídeo imersivo mostrando o impacto da ação humana e das mudanças climáticas sobre
os recifes de corais no arquipélago de Palau, no oceano Pacífico. Ao
mergulhar os estudantes nesse universo para eles tão distante, a RV pode sensibilizá-los
a se preocuparem mais com o meio ambiente e a pressionarem os tomadores de
decisão em suas comunidades a fazerem o mesmo.
Como toda tecnologia ao longo da História, a RV pode ser
negativa ou positiva, dependendo do uso que damos a ela. Pode ser uma ferramenta
a serviço do consumismo e do individualismo, alimentando o sedentarismo e a
alienação. Ou pode ser um instrumento eficaz para gerar empatia e promover a conscientização.
A escolha é nossa!
Eduardo
Felipe Matias é autor dos livros A humanidade e
suas fronteiras e A humanidade contra as cordas, ganhadores do Prêmio Jabuti, coordenador
do livro Marco Legal das Startups, pesquisador visitante na Universidade
Stanford, na Califórnia, Doutor pela USP e sócio da área de Inovação e Startups
de Elias, Matias Advogados.
Artigo originalmente publicado na edição de dezembro/janeiro de 2022/2023 da revista Época Negócios.
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