Eduardo Felipe Matias*
Ao
menos até a Primavera Árabe, uma década atrás, predominava a visão da internet
como um espaço livre que contribuiria para espalhar a democracia pelo planeta.
Não demorou, no entanto, para que autocracias se apropriassem das mesmas
ferramentas que alimentavam os protestos contra seus líderes, se valendo de
exércitos de bots e de trolls para espalhar desinformação e
desacreditar e assediar opositores.
Na
Ucrânia – onde está ocorrendo aquele que talvez seja o primeiro grande conflito
armado mundial também travado de forma ampla nesse espaço virtual –, em
paralelo aos combates reais, há uma guerra de informação em curso. Nesta, até o
momento, quem está perdendo é um governo autoritário, comandado justamente por um
czar da desinformação, Putin, temido pela capacidade de usar a máquina de
propaganda russa para desestabilizar outros países.
Isso
resgata a ideia de que as ferramentas digitais têm o potencial de equalizar as
forças de atores desiguais. Porém, além da bravura e da criatividade do povo
ucraniano e de seu presidente, e da torcida de boa parte da população mundial que
curte e compartilha seus vídeos e memes, há algo mais que justifica essa
vitória narrativa de Davi contra Golias: a mudança na postura de um ator cuja
influência supera a de muitos Estados-nação, as Big Techs, que detêm monopólios
que frustraram o ideal libertário inicial de uma internet descentralizada e sem
donos.
Isentas
de responsabilidade pelo que as pessoas publicam nas mídias sociais por elas controladas,
essas empresas por muito tempo lavaram as mãos e seguiram lucrando com cada
clique, não importando se este direcionasse a discursos de ódio ou fake news.
Mas, recentemente, estas começaram a notar que não lhes restava outra opção a
não ser assumir a complicada tarefa de moderar conteúdos, nem que fosse para
evitar que um ambiente crescentemente tóxico afugentasse usuários e
anunciantes, prejudicando seus negócios.
Agora,
em um desses episódios da História que não dão margem para a neutralidade, elas
resolveram sair de vez de cima do muro. Em discussão no Cyber Policy Center da
Universidade de Stanford, representantes do Facebook e do Twitter puderam
descrever como seus algoritmos têm deixado de recomendar posts de perfis
russos, rotulado as publicações das mídias estatais daquele país e criado fricções
para quem quiser repassá-las, acrescentando uma etapa de confirmação – medidas
que têm reduzido os compartilhamentos em mais de 80%.
O
peso geopolítico das Big Techs não é segredo e foi, inclusive, utilizado por
Mark Zuckerberg para se esquivar das ameaças de ações antitruste, escancarando
que seria melhor para o interesse nacional dos Estados Unidos contar com
empresas dominantes no setor de tecnologia, em vez de ceder essa posição a concorrentes
chinesas. Se Coca-Cola, McDonalds e outras multinacionais se posicionaram contra
a Rússia nesta guerra, por que as Big Techs não poderiam fazer o mesmo? Como as
demais, elas são entes privados, e suas boas intenções parecem evidentes neste
conflito em que a insana agressão por um dos lados o torna indefensável.
Não
se pode, entretanto, deixar de refletir sobre o papel inigualável dessas
empresas no mundo atual. Big Techs comandam redes sociais que são, para boa
parte das pessoas, as principais fontes de informação e as praças públicas onde
as discussões políticas ocorrem. Outras disputas – internacionais e internas –
virão, e nestas talvez o certo e o errado não sejam fáceis de arbitrar, nem as
motivações para apoiar um ou outro lado tão claras. Daí a necessidade de se desenvolver,
cada vez mais, mecanismos que confiram transparência e legitimidade às decisões
por elas tomadas, evitando que interesses ocultos prevaleçam. O fato de que
hoje aplaudimos a ação das Big Techs não significa que não devamos permanecer atentos
aos riscos de um sistema que lhes confere imenso poder econômico e influência
decisiva sobre a democracia, e que pode levá-las também a se tornarem senhores
da guerra de informação digital.
*Eduardo Felipe Matias: Sócio de Elias, Matias Advogados, ganhador do Prêmio Jabuti
com o livro A Humanidade e suas Fronteiras, pesquisador visitante na
Universidade de Stanford
Artigo originalmente publicado na Folha de S.Paulo em 13 de
março de 2022. Acesse aqui: link
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