A concentração de poder nas mãos
das grandes empresas de tecnologia pode ter efeitos nocivos sobre a liberdade
de concorrência, devendo ser debatida
Eduardo Felipe Matias
Na era
industrial, a dependência de novas tecnologias e infraestruturas essenciais em
setores como o financeiro, petrolífero, siderúrgico e ferroviário, concentradas
nas mãos de poucas corporações privadas, representava uma ameaça – situação que
o juiz da Suprema Corte norteamericana Louis Brandeis apelidou à época de “a
maldição da grandeza”.
Mais de cem
anos depois, essa preocupação vem novamente à tona, desta vez em relação às
plataformas – ambientes digitais
que abrangem as redes sociais e serviços como os de busca na internet,
mensagens instantâneas, computação em nuvem e compartilhamento de vídeos, que são uma infraestrutura fundamental da era
digital.
Se até pouco
tempo atrás as atividades de troca ocorriam em um local idealizado de encontro
entre compradores e vendedores, o chamado “mercado”, na economia da informação
o lugar onde isso acontece se materializa nessas plataformas. Estas, no
entanto, diferentemente do mercado fictício, são controladas por determinadas entidades,
as chamadas “big techs”,
grandes empresas de tecnologia que ficam maiores a cada dia, monopolizando alguns mercados.
Facebook e Instagram, controlados pela Meta, ocupam 75% do tráfego
mundial em redes sociais digitais. Quanto aos buscadores, em 2004, havia três atores
principais: Google com 35% do mercado, Yahoo com 32% e MSN com 16%. Atualmente,
a participação global do Google supera os 90%. Em sistemas operacionais de
smartphones, predomina o Android – que é da Alphabet, como o Google –, com
aproximadamente 70%, sendo que os outros 30% são detidos pelo iOS, da Apple. E,
se no início da internet assistiu-se a uma proliferação das lojas online, destaca-se
agora no cenário do comércio virtual uma “loja de tudo” – a Amazon.
Essa grandeza produz efeitos. Assim como, no passado, o domínio de alguns bens e serviços essenciais permitiu que determinadas corporações
extraíssem enormes ganhos, a supremacia de algumas big techs
pode ser por elas utilizada para se apropriar de parte da renda daqueles que
pretendam oferecer algo em suas plataformas, por meio da cobrança de comissões
sobre as transações nelas realizadas.
No caso da Apple e do
Google, que formam um duopólio das lojas de aplicativos para dispositivos
móveis – fora da China, as duas empresas têm mais de 95% desse mercado –, essa
comissão chega a 30%, o que já levou a Apple, por exemplo, a ser
questionada em juízo por Spotify, Tinder e Epic Games, desenvolvedora do
popular jogo Fortnite. E, recentemente, para se enquadrar no Digital Markets
Act da União Europeia, a Apple se viu obrigada a aceitar lojas de aplicativos
de terceiros e opções alternativas de pagamento no iPhone.
O tamanho alcançado por essas empresas
se deve, em boa parte, aos retornos crescentes de escala derivados da
digitalização e ao acúmulo de dados extraídos de seus usuários, que lhes
confere uma vantagem competitiva. Uma vez alcançada a liderança em determinado
mercado, esta dificilmente será revertida, já que os entrantes precisam
contornar os efeitos de rede que beneficiam as empresas dominantes e os custos
de troca que os usuários têm que encarar para se mudar para um novo serviço.
Se fatores como esses explicam por que
as big techs se tornam grandes, não é só por isso que elas permanecem grandes. Como
se essas barreiras de entrada “naturais” já não fossem suficientes, essas
empresas procuram reforçá-las de diversas formas.
Uma delas é
adicionar “atrito” às escolhas dos consumidores. O Google, por exemplo, pagou
26 bilhões de dólares à Apple, Samsung e outras empresas para tornar seu motor
de busca o padrão em diferentes dispositivos. A soma, que parece excessiva, se
justifica pelo fato de que as pessoas ou estão muito ocupadas ou não têm o
conhecimento técnico para mexer nas configurações de fábrica de seus aparelhos.
Garantir ser o buscador padrão significa que dificilmente esses consumidores
acessarão seus concorrentes.
Outra maneira seria
favorecer seus próprios produtos em suas plataformas. A
Amazon já foi acusada de se aproveitar de seu marketplace para coletar dados
sobre seus fornecedores, o que lhe permitiria copiar aquilo que estes ofereciam
e vender sua própria versão. O mesmo ocorreu com o Google, denunciado por dar destaque a seus
produtos em seu mecanismo de busca.
A estratégia mais
comum, entretanto, seria a aquisição pura e simples de novas competidoras – e as enormes reservas em caixa das big techs têm lhes permitido comprar inúmeras startups.
Dois casos emblemáticos são as
aquisições do Instagram e do WhatsApp pelo Facebook. Ambos vinham ganhando
terreno porque haviam sido desenvolvidos para uso em smartphones, ambiente em
que a rede de Mark Zuckerberg não conseguia desempenhar bem. Tendo chegado a 30
milhões de usuários em apenas 18 meses de existência, o Instagram começava a
ameaçar o Facebook que, por apenas 1 bilhão de dólares, resolveu seu problema,
comprando o rival. A aquisição do WhatsApp foi mais cara – 19 bilhões de
dólares – mas garantiu que o Facebook Messenger não precisaria disputar espaço
com aquele aplicativo.
O Google também
insistiu no Google Video até
decidir comprar outra plataforma que vinha fazendo mais sucesso, o YouTube.
Repetiu o movimento ao adquirir o Waze, que poderia desbancar seu próprio
aplicativo de mapeamento online, o Google Maps. E a Amazon comprou potenciais concorrentes
como Zappos e Diapers.com.
Logo, as big techs permanecem grandes também por uma série de estratégias que inibem o surgimento de competidores em potencial. Porém, ao se limitar a concorrência, limita-se também a inovação. Ao lado dos riscos trazidos pela proliferação da desinformação nas plataformas, o possível efeito negativo sobre a livre concorrência do acúmulo de poder pelas big techs é hoje mundialmente debatido. É, inclusive, objeto de uma tomada de subsídios em curso no Brasil, para obter contribuições para a formulação de leis e políticas públicas nessa área. Essa é uma discussão que precisa acontecer.
Eduardo
Felipe Matias é autor dos livros A humanidade e
suas fronteiras e A humanidade contra as cordas, ganhadores do Prêmio Jabuti e
coordenador do livro Marco Legal das Startups. Doutor em Direito Internacional
pela USP, foi visiting scholar nas universidades de Columbia, em NY, e Berkeley
e Stanford, na California, e é sócio da área empresarial de Elias, Matias
Advogados
Artigo originalmente publicado pelo Broadcast do Estadão/Agência Estado em 29 de fevereiro de 2024.
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