Politica e Geopolítica na era digital
Eduardo Felipe Matias
Enquanto a revolução digital vai se consolidando como fator determinante na política interna e internacional, países procuram reafirmar sua soberania tecnológica
Quando a história do século XXI for contada, se reconhecerá
que ela foi em grande parte moldada pela revolução digital. Esta, que muito já
transformou a economia e a sociedade, tem efeitos significativos – e ainda
pouco compreendidos – sobre a Política. Uma nova Guerra Fria, de cunho
tecnológico, vai tomando conta do tabuleiro internacional, enquanto se espalham
pelo mundo protestos potencializados pelas redes sociais e suscetíveis, por
isso mesmo, a influências externas.
Qualquer um que participe de grupos de WhatsApp sabe do
poder de mobilização desse tipo de instrumento. No ano que acaba de se
encerrar, foram registradas revoltas em lugares tão diversos como Chile,
Líbano, Equador, Catalunha, Hong Kong, Sudão e Argélia. Todas elas levadas
adiante por grupos que se auto-organizam, sem lideranças definidas, e
alimentadas pelas novas ferramentas da era digital, como as redes sociais e os smartphones,
repetindo o padrão verificado em ocasiões anteriores, como em 2011, na
Primavera Árabe, ou em 2018, quando o Brasil parou por conta da greve de
caminhoneiros e a França assistiu ao início dos protestos dos “coletes
amarelos”.
Algumas características das redes sociais podem ajudar a
insuflar esses movimentos. Ao que tudo indica, a revolta dos coletes amarelos,
por exemplo, foi impulsionada pelo uso do Facebook, cujo algoritmo favorece
conteúdos postados em grupos, em detrimento daqueles provenientes da imprensa
tradicional, o que pode contribuir para a proliferação de fake news capazes de
radicalizar as manifestações. Há o risco, ainda, de que esses movimentos sejam
manipulados por nações estrangeiras – cogita-se que bots e trolls russos tenham
incitado a violência dos coletes amarelos veiculando notícias e imagens falsas
dos protestos, para desestabilizar o governo de Emmanuel Macron. Imagine-se o
que ocorrerá com o aperfeiçoamento dos chamados deepfakes – áudios ou vídeos
digitalmente modificados para parecerem reais, que podem colocar na boca de um
político palavras que ele nunca disse?
A influência externa pode incidir, ainda, sobre os processos
democráticos tradicionais, como demonstrou o relatório sobre a interferência
russa na eleição americana de 2016 divulgado no ano passado pelo procurador
especial encarregado das investigações, Robert Mueller. E não são apenas os
governos estrangeiros que têm esse potencial. A mesma eleição foi marcada por
outros dois eventos: a obtenção pela consultoria Cambridge Analytica, quatro
anos antes, de dados de usuários do Facebook, utilizados pela campanha de
Trump; e o papel do Wikileaks no vazamento de milhares de e-mails da candidata
Hillary Clinton e de seu chefe de campanha, obtidos por hackers russos, ação
que também beneficiou o então candidato presidencial republicano.
Esses dois últimos exemplos mostram que a revolução digital
ampliou a capacidade dos atores privados de interferirem na vida de uma nação.
Atualmente, não são apenas os pequenos Estados que estão aptos a realizar
ciberataques com alto poder destrutivo, como aquele que se suspeita que a
Coreia do Norte tenha promovido em 2017 por meio do ransomware WannaCry, o
qual, ao “sequestrar” dados e pedir resgate em criptomoedas, paralisou serviços
públicos essenciais de alguns países e pôs suas populações em perigo – aliás,
na recente tensão entre EUA e Irã, a possibilidade de sofrer ciberataques em
retaliação é uma das maiores preocupações do governo americano. Essa faculdade
se estende a grupos terroristas ou mesmo a criminosos individuais. A expansão
da Internet das Coisas somente irá agravar esse risco, permitindo que tais
ataques sejam direcionados, por exemplo, a controlar automóveis autônomos em um
país alvo, gerando o caos.
Tudo isso vem comprovar que, se como tem sido repetido com
tanta frequência a ponto de se tornar clichê, os dados são o novo petróleo, o
domínio dos dados e das tecnologias digitais passa a ser um fator decisivo na
política e na geopolítica.
No âmbito privado, gigantes tecnológicas como Google, Baidu
e Tencent são mais relevantes no cenário internacional do que, valendo-se da
mesma analogia, qualquer empresa do setor do petróleo tenha sido no passado.
Isso porque, se essas empresas amealham imensa quantidade de dados – lembrando
que o número de usuários do Facebook faz dessa rede o “território” mais
populoso do Planeta –, elas detêm poder. E esse poder não se baseia apenas no
acúmulo de informações, mas também na habilidade dessas empresas de prever e
induzir comportamentos, dando origem a um modelo econômico que vem sendo
chamado de “capitalismo de vigilância”.
Já na esfera pública, alguns países iniciaram uma “corrida
armamentista digital”, que envolve, entre outras iniciativas, aquelas voltadas
à inteligência artificial (IA).
Nesse contexto, apesar da intensa ação política da Rússia na
internet, a disputa tende a ser polarizada entre China e EUA.
A primeira anunciou o objetivo de se tornar, até 2030, líder
mundial em IA – algo factível, uma vez que os dados servem de matéria prima
para a IA, e a China, com seus 800 milhões de usuários de internet, os tem de
sobra. Esse país é a prova de que, se por um lado a tecnologia permite a
manifestantes se organizarem para derrubar regimes, por outro ela pode ser
utilizada por governos autoritários para controlar seu povo, como faz a China
por meio de seus sistemas de reconhecimento facial, que ela inclusive tem
buscado exportar para outras nações. Esta tem procurado, ainda, expandir sua
esfera de influência por meio de auxílio financeiro a países em desenvolvimento
e iniciativas voltadas à infraestrutura, pelo plano denominado Um Cinturão, uma
Rota que inclui a criação de uma “Rota da Seda digital”, baseada na instalação
de cabos de fibra ótica, redes de telefonia celular e centros de dados.
Quanto aos EUA, é possível dizer que o país que inventou a
internet e colhe até hoje os frutos disso não quer ser ultrapassado na
revolução que ele próprio iniciou, tendo, para isso, adotado a “Iniciativa
Americana em IA”, juntando-se à dezena de nações que já promovem programas
semelhantes. Além disso, ciosos de sua soberania tecnológica, tentam evitar que
a China, ao controlar as redes americanas de telefonia 5G, aumente sua
capacidade de espionagem – sem falar na possibilidade de que, em caso de
conflito, as empresas chinesas, como a Huawei, atendam a uma eventual ordem de
seu governo de derrubar essas redes, comprometendo a infraestrutura de comunicação
da nação rival.
A tecnologia sempre impactou tanto a política doméstica
quanto a exterior, e não poderia ser diferente em tempos em que esta evolui
exponencialmente. O ciberespaço muda a forma de encarar a segurança nacional, e
a atenção dos Estados para com sua vulnerabilidade e influência dentro e além
de suas fronteiras extrapola mais do que nunca o mundo real. Inovações
disruptivas podem desequilibrar rapidamente o balanço de poder nas relações
internacionais, e aumentar o peso de alguns atores não estatais. O domínio
dessas tecnologias tende a se tornar o grande diferencial de poder na era
digital.
Eduardo Felipe Matias é sócio de NELM Advogados, Doutor em Direito Internacional pela USP, autor dos livros A Humanidade e suas Fronteiras e A Humanidade contra as Cordas, ganhadores do Prêmio Jabuti.
Artigo originalmente publicado no site da Revista Veja em 9
de janeiro de 2020. Para acessar o artigo publicado, clique aqui
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