Por Eduardo Felipe Matias
Como um dia o fez Mark Twain, a globalização poderia afirmar, depois deste fim de semana, que o relato de sua morte foi um exagero. No momento em que esse processo, que tem na abertura econômica um de seus pilares, é posto em xeque por uma onda nacionalista e protecionista, a globalização ganhou novo alento nos últimos dias graças à trégua na guerra comercial entre EUA e China, anunciada em encontro bilateral durante a reunião do G20 e, principalmente, à conclusão das negociações do acordo de livre comércio entre Mercosul e União Europeia (UE), que levaram 20 anos.
Depois de assinado, o acordo ainda precisará ser aprovado pelo Parlamento Europeu e pelos parlamentos dos países membros do Mercosul, sendo que sua completa entrada em vigor dependerá, adicionalmente, da ratificação pelos Estados que integram a UE, em um processo que deverá levar alguns anos e que, certamente, estará sujeito a questionamentos e pressões por parte dos setores que se julgarem de alguma forma prejudicados. Quando finalizado, estará formada a área de livre comércio mais populosa do Planeta, com um mercado de quase 780 milhões de pessoas, um PIB total de US$ 20 trilhões – o que representa aproximadamente 25% da economia mundial – e uma corrente de comércio intensa, que foi de mais de US$ 90 bilhões no ano passado.
Apesar da dimensão e do significado do acordo, talvez seja cedo para dizer que ele será capaz de provocar uma reversão na situação atual, de atitudes hostis à abertura dos mercados. Em relatório publicado na semana passada, a Organização Mundial do Comércio (OMC) alertou que os países do G20 introduziram, entre outubro de 2018 e maio de 2019, 3,5 vezes mais barreiras comerciais do que a média dos últimos 7 anos, tendo essas medidas atingido um fluxo de quase US$ 340 bilhões, segundo maior valor já registrado pela organização.
Nesse contexto, vale a pena destacar o
papel dos EUA, que têm especialmente contribuído para o clima de incerteza que
ronda o comércio internacional. O governo de Donald Trump vem sendo marcado
pela imprevisibilidade nessa área, como se constatou no ano passado, quando
tumultuou o cenário internacional ao impor tarifas sobre a importação de aço e
de alumínio – isso sem falar que é preciso ver quanto tempo durará a trégua na
guerra comercial com a China...
Com relação a acordos de livre
comércio, Trump desistiu das negociações em andamento para formação de um bloco
com a UE e retirou seu país da chamada Parceria Transpacífico, em um erro
estratégico, uma vez que esse acordo tinha entre seus objetivos contrabalancear
a influência chinesa sobre o comércio da região. Além disso, as posições
isolacionistas adotadas pelo presidente americano têm consequências sobre o multilateralismo
comercial, como mostra a obstrução à nomeação de novos membros para o Órgão de
Apelação da OMC, que tem prejudicado o funcionamento do sistema de solução de
disputas dessa organização e pode levar a sua paralisia.
O protecionismo em alta não significa, no entanto,
que as forças da globalização estejam paradas. Sinais disso não faltam, e o
acordo entre Mercosul e UE vem se somar a outros movimentos recentes. Mesmo sem
os EUA, os países da Parceria Transpacífico levaram adiante o tratado, que passou
a valer no final do ano passado. E, em 2019, foi a vez do acordo entre UE e Japão
entrar em vigor, criando um bloco com 600 milhões de pessoas, que abrange um
terço do PIB global e 40% do comércio mundial.
No Reino Unido, mesmo os partidários do Brexit não
conseguem conceber a saída de seu país da UE sem que esta seja seguida de algum
tipo de acordo comercial com a região futuramente. Até
Trump acabou não desfazendo o bloco antes conhecido como NAFTA – segundo ele,
“talvez o pior acordo comercial já feito” –, o qual foi renegociado dando lugar a um novo “Acordo EUA-México-Canadá”,
também assinado no ano passado.
A
outra tendência que se viu fortalecida no fim de semana foi a sustentabilidade,
que vai se firmando como um imperativo dos dias atuais. Como o presidente
francês Emmanuel Macron procurou deixar bem claro, não haveria acordo comercial
entre Mercosul e UE não fosse o compromisso brasileiro em se manter no Acordo
de Paris sobre o clima. É verdade que, graças à pressão de parte do setor
agrícola brasileiro, que via na renúncia aos compromissos de redução de
emissões de gases de efeito estufa uma mensagem equivocada que faria com que os
produtos nacionais perdessem mercado no exterior, o governo brasileiro já havia
recuado de sua posição contrária ao acordo climático. Mas agora, pelo acordo
comercial com a UE, esses compromissos foram reforçados. O acordo contará com um
capítulo específico no qual as partes reiteram suas obrigações em relação aos acordos multilaterais ambientais, como o Acordo de Paris, ao desenvolvimento
sustentável e à conservação das florestas e da biodiversidade.
Agora,
será preciso se deter com calma sobre cada ponto do acordo e entender seus
efeitos. Existe uma preocupação de que tanto os países europeus quanto os do
cone sul estivessem fragilizados e pressionados politicamente para concluir as
negociações não importa quais fossem as condições. A Europa, por se sentir de
escanteio em um mundo cada vez mais dominado economicamente por EUA e China. Os
países do Mercosul, pelas cobranças internas, instabilidade econômica e
eleições prestes a acontecer, caso da Argentina. Isso poderia ter levado alguma
das partes a ceder demais para se chegar a um acordo que, ao final, se mostraria
desequilibrado.
Ainda
que seja preciso medir os prós e contras do acordo – a possibilidade de
aplicação do chamado princípio da precaução pelos europeus para suspender as
importações do Mercosul acendeu uma luz amarela no setor agrícola brasileiro,
por exemplo – como se viu, este é uma boa notícia tanto para a economia mundial
quanto para os dois blocos e os países que os integram.
Quanto ao Mercosul, criticado por ser um empecilho para a assinatura de tratados desse
tipo com terceiros países, o fato de que se tenha conseguido chegar a um
consenso interno nesta negociação é, por si só, algo positivo. Na prática, os
países da região têm muito a ganhar com o acordo. Por este, a UE zerará, no
prazo máximo de 10 anos, as tarifas de importação de mais de 90% das
exportações do Mercosul – entre elas, as de produtos agrícolas como frutas,
suco de laranja e café solúvel –, e concederá às restantes – produtos como
açúcar, etanol e carnes – acesso preferencial por meio de quotas e reduções parciais de tarifas. Além disso, a UE eliminará 100% de suas tarifas sobre a
importação de produtos industriais do Mercosul.
Para
ao Brasil, o acordo também parece promissor. Pelas estimativas do governo, a
criação do bloco levaria a um incremento de R$ 87,5 bilhões do PIB brasileiro em
15 anos, podendo chegar a R$ 125 bilhões, e a um aumento de investimentos no País
de US$ 113 bilhões no mesmo período. Quanto às exportações brasileiras para
a UE, espera-se que acarretem ganhos de quase US$ 100 bilhões até 2035.
Números como esses explicam por que, ao longo dos anos, o comércio internacional tem sido fonte de riqueza e fator de crescimento para diversos países em desenvolvimento. A abertura da economia gera ganhos de competitividade para os setores produtivos e traz benefícios para a população como um todo. Entre a teoria conspiratória do globalismo e a teoria econômica do liberalismo, ao menos desta vez o governo ficou com a segunda. Já passa da hora de o Brasil aumentar sua participação no comércio mundial, integrando-se às cadeias globais de valor. O acordo entre Mercosul e UE pode ser um importante passo nessa direção.
Publicado originalmente no site InfoMoney em 01/07/19. Visualizar: link
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