Na
Fronteir@
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A
regulação da IA e seus obstáculos
Governar a inteligência
artificial, potencializando seus efeitos positivos, é um dos maiores desafios
de nosso tempo. Para sermos bem-sucedidos nessa missão, precisamos entender as
dificuldades enfrentadas nessa regulação e procurar contorná-las.
Eduardo
Felipe Matias
Autor
dos livros A humanidade e suas fronteiras e A humanidade contra as cordas,
ganhadores do Prêmio Jabuti, e coordenador do livro Marco Legal das Startups. Doutor
em Direito Internacional pela USP, foi visiting scholar nas universidades de
Columbia, em NY, e Berkeley e Stanford, na California, e é sócio da área empresarial
de Elias, Matias Advogados
Em 2024, a regulação da
inteligência artificial (IA) estará em discussão em todo o planeta, inclusive no
Brasil. A criação de normas capazes de governar a IA de forma a conter seus
possíveis efeitos negativos sem abrir mão de seus inúmeros benefícios não é, no
entanto, uma tarefa simples.
A definição de IA, em si, é o
primeiro problema. Para conceber um regime regulatório, é preciso estabelecer seu
objeto. Porém, não existe conceito amplamente aceito de IA que possa ser
utilizado para esse fim. É verdade que há outras áreas cuja definição é igualmente
vaga – como energia ou meio ambiente – que, nem por isso, deixam de ser
reguladas. Assim como nesses casos, qualquer regime que se venha a adotar
precisa levar em conta que a IA não consiste em uma única tecnologia, mas sim em
um conjunto de técnicas em campos distintos, como o do reconhecimento de fala e
o da visão computacional, que podem ter uma infinidade de aplicações, em múltiplas
indústrias, com diferentes riscos – a mesma aplicação que não representa ameaça
no setor de entretenimento pode ser perigosa se utilizada na aviação.
Sendo uma tecnologia de
propósito geral, a IA desperta preocupações igualmente amplas, abrangendo não
apenas questões de segurança, mas também de privacidade, discriminação,
segurança nacional e, até mesmo, risco existencial para a humanidade, como alegam
alguns.
Muitas dessas preocupações não
encontram reflexo nas atribuições das agências reguladoras existentes, ou perpassam
a competência de muitas delas, sendo que todas podem entender necessário que
uma determinada aplicação fique sob sua jurisdição. Somada à questão dos
diferentes níveis de risco, isso significa que a mesma aplicação poderia e
deveria ser tratada de maneira diferente por agências distintas, tornando o
controle dessas tecnologias no mínimo confuso.
Outro ponto relevante, abordado
anteriormente nesta coluna, é a opacidade dos sistemas de IA, seja por seus
componentes estarem sob proteção de propriedade intelectual, seja por seu grau
de complexidade, que torna praticamente impossível compreender como estes chegam
a certos resultados. Baseados em modelos de aprendizado de máquina, esses
sistemas tendem a evoluir de forma autônoma e nem sempre da maneira imaginada
por seus programadores, o que os torna imprevisíveis.
Essa imprevisibilidade
diferencia a IA de outros setores – como a indústria farmacêutica, na qual as
moléculas utilizadas em um composto tendem a produzir sempre as mesmas reações
verificadas nos testes que permitiram sua comercialização por não causarem
danos à saúde –, e vai de encontro a um dos objetivos de qualquer regulação,
que é identificar e tentar prevenir riscos.
Há, ainda, uma desconexão
entre a lentidão habitual da criação de leis e regulamentos, que depende de
processos democráticos e burocráticos de elaboração e aprovação, e a rapidez da
inovação tecnológica, ainda mais acelerada no caso da IA, hoje em crescimento
exponencial. Esse conhecido "problema
de ritmo" (pacing problem) faz que a regulação não consiga
acompanhar a tecnologia que busca regular, o que leva à demora na implementação
de regras que preencham as lacunas existentes a tempo de evitar que causem
prejuízos, bem como à rápida desatualização de qualquer norma que seja
promulgada para isso, tornando-a obsoleta e ineficaz.
As mesmas dificuldades seriam
enfrentadas por uma agência que viesse a ser instituída para lidar exclusivamente
com as questões provocadas pela IA – proposta por si só complexa de se desenhar,
considerando a multiplicidade de temas envolvidos e partes interessadas. Além
disso, para formar seu corpo técnico, esse órgão enfrentaria uma disputa
acirrada por talentos com a iniciativa privada, apta a oferecer salários muito
maiores a seus empregados.
Para regular uma área, contudo,
você precisa entendê-la. E há uma grande assimetria de informações entre poder
público e grandes empresas de tecnologia, que investem pesadamente em pesquisa
e desenvolvimento de IA, o que as leva a concentrar recursos computacionais sem
igual e atrair os melhores profissionais do mercado.
A fragilidade dessa agência se
agrava se considerarmos que, caso ela venha a ser capaz de contratar pessoas
com domínio da área, não seria incomum que estas ou tenham vindo de corporações
ou, em algum momento, deixem sua função pública para trabalhar nelas. Esse fenômeno,
conhecido como “porta giratória”, costuma ser ainda mais notado em setores com
alto grau de especialização e poucos profissionais habilitados, como é o caso
da IA, e pode levar funcionários do governo a não quererem desagradar seus
possíveis futuros empregadores. Isso sem falar na possibilidade da chamada
“captura da agência” por empresas que, por meio de lobbies, presentes e
patrocínios, podem tornar os reguladores simpáticos à indústria que estão regulando.
A todos esses fatores podemos
acrescentar a dificuldade de governar algo internacional por natureza – tanto pela
IA ser dominada por poderosos atores globais que operam em diversos países,
quanto por seus efeitos, que podem extrapolar as fronteiras nacionais. Já ficou
claro em outras situações, como o combate às mudanças climáticas, que não é
fácil alinhar os interesses das diversas nações a fim de vencer desafios mundiais.
Nada disso significa que
devamos abrir mão de regular a IA, a qual pode ter impactos significativos sobre
a sociedade. É preciso, entretanto, entender os obstáculos enfrentados nessa missão,
para que possamos pensar em formas flexíveis e eficazes de governança, que vão
além dos modelos tradicionais.
Artigo originalmente publicado na edição de fevereiro de 2024 na revista Época Negócios.
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