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A Convenção sobre IA do Conselho da Europa e seus efeitos

30 Setembro 2024/ Notícias & Artigos/

Iniciativas internacionais de regulação da IA podem trazer consequências que vão além de seus países signatários

 

Eduardo Felipe Matias

 

Assiste-se, atualmente, a um movimento global para tentar regular a inteligência artificial (IA), com múltiplas iniciativas em diversos países ao redor do mundo. No Brasil, onde também se discute o tema, devemos ficar atentos a legislações que, mesmo que não sejam aplicáveis aqui diretamente, podem ter efeitos sobre as empresas nacionais.

A ação internacional mais recente nesse sentido partiu do Conselho da Europa. A Convenção-Quadro sobre Inteligência Artificial e Direitos Humanos, Democracia e Estado de Direito foi discutida pelos 46 Estados membros daquela organização, pela União Europeia (UE) e por onze Estados não membros, entre os quais Estados Unidos, Argentina, Austrália, Canadá, Japão e México.

Alinhada à razão de ser do próprio Conselho, essa Convenção tem por objetivo que os direitos humanos, a democracia e o estado de direito sejam respeitados durante o chamado ciclo de vida da IA, expressão utilizada para descrever todas as suas fases de desenvolvimento e operação, desde sua concepção, design e desenvolvimento, passando pela implementação e possíveis atualizações, até sua descontinuação.

Para proteger os direitos humanos, a Convenção determina que as atividades ocorridas durante esse ciclo devem estar alinhadas com suas regras e as de outros documentos internacionais que tratam da matéria. Um de seus pilares centrais é a preservação da dignidade humana, devendo esses sistemas ser projetados e utilizados de forma a evitar que as pessoas estejam sujeitas a decisões automatizadas que possam violar seus direitos.

Isso inclui o combate à discriminação, algo necessário à medida que está comprovado que sistemas de IA podem reproduzir e consolidar vieses encontrados nas bases de dados usadas em seu treinamento. A Convenção ressalta o potencial da IA de gerar ou agravar desigualdades, obrigando a adoção de medidas para evitar que esta perpetue e amplie preconceitos, especialmente em relação a grupos vulneráveis.

Para defender a democracia, a Convenção prevê que a IA não deverá ser usada para minar a integridade e a eficácia das instituições e processos democráticos. Para isso, visa preservar a autonomia individual, favorecendo a capacidade das pessoas de tomar decisões livres e informadas, sem a interferência indevida de sistemas automatizados que possam manipulá-las ou controlar suas ações de maneira opaca. Para isso, elas devem estar cientes de quando estão interagindo com uma IA e ter a oportunidade de questionar decisões que as afetem diretamente.

A transparência é considerada outro princípio crucial para a democracia, o que inclui a necessidade de identificação clara de conteúdos gerados por IA – regra que, no contexto eleitoral, foi estabelecida neste ano pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) brasileiro. Além disso, a Convenção prevê que as pessoas sejam avisadas quando estiverem interagindo com uma IA em vez de com um humano.

Para que seus objetivos sejam atingidos, a Convenção estabelece uma série de medidas.

Primeiro, os signatários deverão adotar ações para a identificação, avaliação, prevenção e mitigação de riscos da IA. Encampando a ideia incorporada à recente regulação de IA da UE (EU Artificial Intelligence Act), que prevê um tratamento diferenciado conforme o nível de risco apresentado por cada sistema, a Convenção estabelece que essas ações deverão ser graduadas e diferenciadas, levando em conta o contexto e a aplicação pretendido.

Exige-se, ainda, que os sistemas de IA sejam supervisionados adequadamente. Isso inclui a avaliação e o monitoramento de possíveis impactos adversos, procurando garantir que desenvolvedores e operadores prestarão contas e poderão ser responsabilizados por qualquer violação ou dano causado.

Por fim, o tratado requer a implementação de medidas voltadas à confiabilidade e à segurança da IA. Isso inclui determinar, quando apropriado, que os sistemas sejam testados antes de disponibilizá-los para o primeiro uso e quando forem significativamente modificados. A intenção é fomentar a inovação segura, reconhecendo que a IA tem um lado positivo e pode contribuir para solucionar diversos problemas da atualidade. Aumentar a confiança nesses sistemas pode facilitar a aceitação e adesão das pessoas a essas soluções, permitindo que estas ampliem seu alcance.

A Convenção, que está aberta desde maio deste ano para a adesão de qualquer país que se comprometa a cumprir suas disposições, já conta com as assinaturas de Estados Unidos, UE e Reino Unido, entre outros. Para entrar em vigor, ela depende da posterior ratificação por cinco países, incluindo ao menos três membros do Conselho da Europa.

Iniciativas desse tipo podem ter consequências que vão além de seus signatários. Dependendo do peso dos países que a elas aderirem, as grandes empresas de tecnologia, que operam globalmente, tendem a adotar suas regras como padrão. Além disso, elas tendem a influenciar outras jurisdições – como aconteceu com o Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (GDPR) da UE, que inspirou, inclusive, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) brasileira. Por isso, as empresas nacionais devem estar atentas a novas ações que venham a surgir para regular a IA, ainda que distantes. Amanhã, elas podem estar batendo à porta.

 

Eduardo Felipe Matias é autor dos livros A humanidade e suas fronteiras e A humanidade contra as cordas, ganhadores do Prêmio Jabuti e coordenador do livro Marco Legal das Startups. Doutor em Direito Internacional pela USP, foi visiting scholar nas universidades de Columbia, em NY, e Berkeley e Stanford, na California, e é professor convidado da Fundação Dom Cabral e sócio da área empresarial de Elias, Matias Advogados

 

Artigo originalmente publicado pelo Broadcast do Estadão/Agência Estado em 30 de setembro de 2024.



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